Apresentação de Julie Dorrico


 

        A palavra, para nós, povos indígenas, é sagrada como a terra. Com a palavra dos nossos ancestrais, rememoramos as fundações do mundo, narramos os eventos que nos trouxeram até aqui, as aventuras dos nossos guerreiros e heróis. Aprendemos a curar, a celebrar, a reverenciar todos os seres humanos e não humanos. São histórias imemoriais que nossos antepassados nos legaram: de árvore, de gente, de rio, de animais, de plantas, de constelações. Continuadas pelos nossos avós, pais, mães, tios e tias, chegamos no hoje com a missão de semear a palavra indígena pelo território da literatura brasileira, devastada pela monocultura, pelo extrativismo e pelo garimpo da representação. 

          A palavra indígena, até o advento da Constituição Federal (1988) manteve-se (e mantém-se) viva na oralidade. Ameaçada pelo mito da integração, que anunciava mais uma vez a extinção dos povos indígenas e a formação do povo brasileiro, a palavra indígena resistiu, não obstante o calendário de opressão. A partir dos direitos assegurados no Capítulo dos Índios, sobre a terra, sobre as culturas; e ainda, na Convenção 169 da OIT, em 1989, sobre a soberania; os sujeitos indígenas no Brasil puderam, enfim, inscrever suas histórias, modos de vida, tradições milenares, e a inenarrável saga de sobrevivência nos territórios rurais e nas cidades, no objeto livro, como uma retomada pelo direito de determinar e representar os próprios destinos, violados e interrompidos pela política indigenista no país. 

         A I Mostra de Literatura Indígena: o território das palavras ancestrais tem por objetivo apresentar escritores e obras indígenas. Sujeitos indígenas que exercem o ofício da escrita hegemônica, mas que reverenciam a palavra e a terra concomitantemente. Os autores indígenas tomam a palavra alfabética como um instrumento para semear a pluralidade de formas de dar sentido ao mundo no território das letras, da universidade, do livro, da leitura, para aproximar todos da floresta, de ser natureza.

    Os autores aqui selecionados publicaram livros no mercado editorial, conseguindo adentrar com sua palavra coletiva um território predominantemente embranquecido e masculino. Cada vez que um autor pôde experienciar ser escritor e ter um livro publicado, ele e/ou ela puderam apresentar um pouco do seu pertencimento, de seu povo, de seu território rural ou na cidade, físico e simbólico.

       Os recortes das narrativas dos autores, dessa Mostra, expõem a extensão da floresta na poética literária indígena, legada pelos ensinamentos dos anciãos. Bem como a persistência em lutar pela identidade indígena. 

        No Brasil, segundo o último censo do IBGE, há 305 povos originários, falantes de 274 línguas indígenas. Presentes em todo território nacional, nós povos e sujeitos indígenas temos de lidar com o silenciamento, a invisibilização que nos sufoca e marginaliza. Espero que esta I Mostra de Literatura Indígena: o território das palavras ancestrais possa ser um semeadura de muitas para que o país nos reconheça em nosso próprio território. Além disso, que a natureza também é gente, e que ela nos ensina e nos provê alimentação, amor, aventura, desgraça, saudade, pois viver é uma cerimônia.

        A I Mostra de Literatura Indígena: o território das palavras ancestrais tem por objetivo apresentar uma curadoria de obras de literatura de autoria indígena. Os autores, sujeitos individuais elencados aqui, pertencem a um dos 305 povos originários existentes no território nacional. 

       Esta Mostra de Literatura Indígena quer contar algumas histórias. A luta pela demarcação dos territórios indígenas, e analogamente, a literatura assumida como um território que precisa ser demarcado com a presença indígena também. A vinculação do humano indígena à humanidade da natureza; e a autoria individual.

         Quando os indivíduos indígenas publicaram o livro editorial, apenas na década de 1990, romperam com a tradicional tutela epistemológica que os colocava como narradores, como testemunhas, depoentes de suas próprias histórias, valores e espiritualidades. Eles Também foram - e ainda são - questionados sobre o direito de ser indivíduos na lógica do mercado editorial, do livro. Os enquadramentos põem em dúvida o direito de serem escritores, autores, uma vez que as identidades indígenas em geral são tratadas como exclusivamente coletiva, deslocando-os desse espaço literário e cultural. 

        Por isso, essa Mostra se volta para apreciadores de literatura, para educadores, para leitores, para todos que desconhecem a literatura indígena e políticas de identidade indígena no país. Para cada um que queira conhecer muitos outros mundos originários e, além disso, para que a sociedade envolvente possa perceber que não se trata mais de perguntar o que se perde com a escrita, com o livro, mas o que ganhamos quando podemos lutar com a ferramenta dominante do homem branco.

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FICHA TÉCNICA:
I Mostra de Literatura Indígena:
território de palavras ancestrais

 

Coordenação: Lídia Maria Meirelles

Projeto e curadoria: Julie Dorrico

Suporte administrativo: Mariana Elisa Gonçalves

Ilustrações e criação: Bianca Lana

Montagem: Cecília Almeida, Gustavo Oliveira, Mariana Elisa Gonçalves

Apoio: Kássio Rosa, Karla Teixeira, Vitória Brasileira, Ramon Filho.

 

Realização Museu do Índio/UFU

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